A partir da lama

Ano passado, aos meus quase 34 anos, eu fiz uma dolorosa retrospectiva de mim, da minha vida, dos meus sonhos, medos e desesperanças. O ano de 2024 chegou e acabou, passou rápido e agora já em 2025, as vésperas dos meus 35 anos, sinto a necessidade de mais uma vez escrever sobre a minha vida, sobre os meus sonhos, medos, decepções e entendimentos.

Eu ainda sonho com muitas coisas – e que bom que ainda é assim – algumas que pude tornar realidade e outras ainda não alcancei e talvez nunca aconteça para mim. Ainda almejo me realizar profissionalmente, prover para minha filha, as aspirações de uma mãe como tantas outras. Mas a experiência do dia a dia tem me ensinado também a querer prover outras coisas que vão além do material, como o carinho, a paciência, e na busca por todas essas coisas (materiais e afetivas) me voltei mais uma vez para o caminho de entendimento sobre mim e o descompasso entre os meus desejos e a realidade. Refleti sobre como esse aspecto intransponível, que é a realidade, me afeta, como alimenta medos e a sensação de descrença na vida e nos sonhos de futuro pleno.

Mas entendi que tanto meus sonhos, medos, desejos e a realidade, a vida como ela é, caminham juntos em perfeito descompasso. Nesse momento da minha vida, deixei um pouco de lado as receitas de bolo, a ideia de uma sequência de ações com resultados fixos, também tenho buscado me desvincular das verdades alheias, da busca pela aprovação dos outros e do medo da desaprovação e da rejeição. Ainda acredito que estamos interconectados e que vivemos em coletividades, entretanto, entendo hoje que existe a minha individualidade e que ela transita nos espaços da vida em sociedade e família, e que para além de filha, irmã, amiga, esposa e mãe, sou mais uma pessoa experienciando a transitoriedade que é a vida e as relações afetivas.

Entendo que as cobranças existem, sobre mim, sobre como demando dos outros e como cada um de nós sustenta as consequências de ser quem se é. Escolher ser “eu” tem seus ganhos e suas perdas e cada vez mais tenho trabalhado a resiliência perante o afastamento e a transformação das relações e sentimentos que se modificam em detrimento da minha vontade – porque, sim, não tenho o controle sobre a minha vida e muito menos sobre os outros. Essa é uma importante verdade que venho pelejando para entender e vivenciar, porque quer eu aceite ou não, a vida e as pessoas têm roteiros próprios. Assumir a mim mesma e os meus limites pessoais é uma conquista amarga, porque nem todos no meu entorno familiar e social estão abertos a gostar desse ser em construção que é a Amanda de hoje.

Mas uma coisa tenho como certa: que eu quero gostar dessa nova pessoa na qual estou me percebendo, e que eu sou o centro dessa minha existência. E que nessa vida que construo para mim existe espaço para erros e acertos, para receitas de bolo que não deram certo, para planos A, B, C, D, e quantos mais eu quiser pensar. Também tem espaço para o medo do fracasso que pode conviver com o desejo e esperança do “dar certo”. Compreendendo que, assim como alguém outra vez me falou, estar vivo é estar disposto a se molhar e a se permitir mergulhar na lama, é estar no lugar de desconforto, frustração e tristeza. Não saí magicamente deste lugar, digo que, de onde eu estou, consigo colocar os olhos para fora, respirar e enxergar além, entendendo que esses processos fazem parte da vida como ela é, imperfeita, mas flexível, e que nela tem espaço para tudo: sonhos, desejos, medos, erros, acertos, fracassos, sucessos, frustrações, pausas e o continuar.

Quando nos encontramos

Escrever: para mim, para os outros ou para nós? Escrevo às vezes porque sinto que preciso, outras porque quero (acho que quero) ou porque me lembraram que gostaram de algo que escrevi. Vivo muitos dilemas, mas um que sempre se faz presente e que transborda o interno do meu ser, que extrapola minha intimidade, invade minha face e joga minhas emoções e sentimentos para fora por meio das minhas ações. É difícil saber quando faço algo para mim ou para os outros, ou pensando no que acharão os outros (do meu agir, de mim), como se uma ação, o ato de escrever ou outra coisa qualquer, pudesse sozinho afirmar ou negar algo sobre mim para os outros. E que a percepção desse outro refletiria na imagem que faço sobre a minha pessoa como se fosse a minha verdade.

Escrevo hoje esses pensamentos em função de uma mistura de coisas, que por vezes parecem um mar tão grande que me perco. E outras tão estreitas que me encolho na pequenez do meu ser. Vivo tentando superar na minha mente a dúvida sobre as razões pelas quais escrevo, escuto, sorrio, acolho etc. Porque sinto que busco constantemente agradar os outros. Tem momentos (muitos) que me vêm à mente rostos, nomes, lembranças e já não sei se o que faço decorre da minha escolha exclusivamente. Tenho a impressão de que nada que faço é livre de motivações externas ou voluntário. Acho não ser possível isolar nossas decisões do resto das pessoas que existem (perto ou distante), daquelas que vemos em redes sociais, na TV, que passaram por nós na rua, que encontramos uma vez e nunca mais vamos encontrar.

Penso que as barreiras que pensamos existir entre o “eu” e os “outros” são mais difusas do que cremos ser. A cada dia percebo como os meus pensamentos sobre mim me levam a pensar minha relação com um “nós” próximo, mas também com o distante e não imaginado. Outro dia me agradeceram por um texto que escrevi e me arrisquei a compartilhar no meu recém criado blog para os meus inexistentes leitores. Uns pensamentos confusos frutos do meu processo terapêutico, que, depois de uma noite de sono agitada, amarrei em frases e parágrafos e que viraram um texto que alegremente intitulei, postei e mandei para minha mãe, minha psicóloga, meu marido e minha cunhada, pessoas que sabia que iriam ler, comentar e, com sorte, me dar uma estrelinha (biscoito!).

Mas nunca me ocorreu que minhas palavras fossem usadas como leitura de sessões de terapia de outras pessoas. Muito menos receber o retorno de que meu texto tocou alguém, ao ponto dessa outra pessoa sentir que foi escrito para ela. E essa identificação de alguém que traduziu as minhas palavras e sentimentos, em vivências dela, conectaram, nem que por um pouco, por uma fração de tempo, nossas vidas. Em meio a existências tão diferentes e desiguais, a possibilidade dessa capacidade de nos encontrar e nos esbarrar em diálogos com os sentimentos dos outros, me traz de volta meu questionamento inicial, sobre porque e para quem escrevo.

E, começo a pensar que uma das respostas (porque penso que pode existir uma variedade delas), é que escrevo para mim, porque quero, mas, também, o faço no desejo de que as reflexões e sentimentos que externalizo cheguem até alguém. A cada momento da vida, aumento a intuição sobre a permeação da vida, que entendo não funcionar como uma fronteira sólida, ou como uma reta constante entre eu e os outros. Acredito hoje (porque amanhã ou depois posso pensar de outra forma) que a vida flutua em linhas curvas, linhas pontilhadas, invisíveis, linhas borradas, e que, nesses instantes de imprevisibilidade, as existências e suas particularidades se cruzam e nesse instante algo se reconhece (queira ou não), nesse momento somos convidados a olhar o “nós” que nos é apresentado. 

E nessas horas em que escrevo sou chamada para perceber que não faço o que faço apenas porque quero, e nem só para mim. E que desejo alcançar a outra, o outro, na expectativa de que, por um instante, possamos nos reconhecer em uma fração de um “nós” que sente, se afeta e consegue olhar além do que o espelho nos deixa ver.  

Sei lá

Propósito, “é preciso ter um propósito na vida”, ouvi dizer — não lembro quando, onde, nem de quem — e percebo, hoje, que tenho alguns. Sem entrar no mérito sobre o porquê os tenho, sei que tenho como objetivo na vida ser independente financeiramente, ter uma profissão que goste e que me proporcione uma condição de vida que eu considere digna e confortável, poder oferecer à minha filha coisas como aulas de natação, escola, plano de saúde, lazer, e a lista continua.

Mas, hoje, eu não tenho nenhuma dessas coisas. Até aí, tudo bem, consigo lidar com a ideia do “hoje”, pois entendo que nem tudo acontece no momento que desejo. O problema não está na espera, o problema é na (in)certeza sobre a (im)possibilidade de que um dia conseguirei tais coisas. Uma constatação que, de uns dias para cá, tem ficado mais próxima de uma certeza (não muito boa). 

Minha filha hoje tem seis meses e seis dias, eu tenho trinta e três anos, caminhando para os trinta e quatro. Ainda que muito feliz com cada conquista no exercício do maternar, a ansiedade pelos dias futuros, pelas demandas que, na condição de mãe, me predispus a lidar, para além do afeto, amor, respeito e paciência, sou confrontada por anseios que extrapolam aqueles que eu nutria anteriormente quanto a minha capacidade como mãe de cuidar da minha filha — ainda existem, mas a cada dia vou os desconstruindo.

O que não consigo dar conta é dos sentimentos de tristeza e frustração que invadiram o meu ano que mal começou, e que em relação ao qual já tenho zero expectativas. 

É difícil ser otimista quanto aos seus projetos de futuro quando se percebe que tudo que te foi dito nesse quesito era mentira. Vou tentar explicar melhor. 

Me contaram em casa que se eu fizesse uma faculdade, se estagiasse, que se me tornasse advogada, se conseguisse um trabalho em um escritório, conseguiria uma profissão e eventualmente estabilidade profissional e retorno financeiro pelos meus anos de estudo e trabalho. Então fiz como me falaram, e no final da faculdade consegui o trabalho. Mas não cheguei nesse lugar de estabilidade, e constatei que meus colegas mais velhos em sua maioria também não chegaram. Mudei de local de trabalho, e cada vez mais tinha certeza que não estava disposta a continuar naquele caminho, naqueles lugares, buscando algo que nunca iria conseguir.

Não me entenda mal, tem quem consiga (parabéns para essas pessoas, mesmo), mas eu não consegui, e acho que muitos também não conseguiram. Mesmo assim, continuei nessa busca pela tal estabilidade financeira.  Iniciei um mestrado, porque dizem que títulos acadêmicos melhoram suas chances de inserção profissional e remuneração. Mais uma vez, não me entenda mal, eu gosto muito do meu mestrado, do que pesquiso, mas, como disse, tem seis meses e seis dias que sou mãe e que minha lista de medos e inseguranças cresceu consideravelmente.

Desde o dia 30 de dezembro de 2023, durmo e acordo pensando nas coisas que não posso oferecer para minha filha, e, pior, na incerteza se um dia terei os meios para oferecer e, ainda, em como não encontro alternativas. Faço esquemas mentais, e não encontro caminhos possíveis. Tenho me esforçado para ser Mestra (me orgulho disso!), um título de relevância para meu currículo, e, ainda assim, na minha cidade não tem até então vagas de trabalho nessa área específica (se tem, eu desconheço). Também não sei de vagas de concurso público na única universidade da minha cidade, a faculdade particular que poderia trabalhar só abrirá seleção na metade ou final do ano. O que faço enquanto isso? Porque o tempo, percebo cada vez mais, passa muito rápido. E, ainda mais, quando minha filha que faz a minha percepção de tempo ampliar e estreitar contraditoriamente.

O que faço com os diplomas de advogada, especialista e mestra? Pior que ainda quero fazer doutorado, pesquisar mais. Mas durante e depois, como faço, o que faço com esse doutorado? Onde trabalharei? Vivo de quê? Sustento minha filha e os sonhos que tenho para nós com o quê? 

Antes dela se tornar um ser concreto, com um rosto que amo cada vez mais e mais, não tinha dimensão de tudo isso, de tudo o que gostaria de ter e dos empecilhos para tal. Que concurso farei? Se tiver, será que passarei? Que lugar vai me contratar? O dinheiro, se vier, será que será suficiente? Eu não sei, é isso o que sei, porque prefiro me apegar a dúvida do que a uma certeza do não.  Não sei se um dia conseguirei colocar minha filha na natação, se vou poder pagar a escola mais barata do bairro, o seu plano de saúde e o que mais uma criança precisa ao longo da vida.

Tenho certeza da minha frustração porque a receita de bolo que me deram solou. Meu bolo ficou pesado, com gosto de queimado, e por mais que eu tente reproduzir a receita ele não cresce e tenho que comer ele ainda assim porque é tudo que eu conheço e que posso fazer.

Eu queria ter iniciado esse ano com esperança de que as coisas vão dar certo para mim e minha família. Não falo sobre ser rica, disso certamente tenho uma certeza – não vou ser – por razões que aqui não estou disposta a tratar, mas basta dizer que não sou herdeira de uma fortuna e que trabalhar sempre foi uma necessidade. Falo sobre o que considero que todos deveriam poder ter e desejar para si, para os seus e os não seus. Vida digna, saúde, lazer, educação, cultura, viajar, comer, sonhar em conhecer um país, imaginar uma realidade na qual não precise ter medo de não ter o dinheiro do aluguel, do condomínio, da conta de luz, do mercado, o medo da falta.

Meu propósito hoje é ter alguma certeza na vida além da que nada é ou será como eu gostaria que fosse. Queria que esse começo de ano fosse mais otimista, eu costumava ser mais otimista, mas contraditoriamente, o motivo da minha alegria diária me leva a enxergar, de forma mais clara, coisas que eu nem estava procurando. É isso, não tenho desfecho para esse texto, não tem mensagem bonita para o final, só um propósito meio morto em um ano que mal começou.

As métricas do amor: como avaliamos as demonstrações de amor

Como medimos e analisamos as ações das pessoas e a partir delas tiramos conclusões sobre o tamanho do amor que elas sentem por nós e pelos outros? Como julgamos a forma dos outros de demonstrar afeto a partir das nossas realidades e do nosso entendimento, que não é só nosso?

O nosso modelo/concepção do que é amor é parte do nosso processo, das nossas vivências e construções familiares e sociais. O que não quer dizer que seja melhor ou mais certa que as outras, e nem errada. Não é possível e, mesmo que fosse, não seria saudável querer que a outra (o) atenda aos requisitos da nossa métrica.

Achar que é possível perceber a intensidade do amor de alguém por meio de atos que correspondem com expectativas do que se entende como demonstração de amor é um equívoco, que faz mal para si e para os outros sob os quais recaem essas valorações e análises.

Reforçar aspectos positivos das ações das pessoas pode ser algo benéfico, que anima e incentiva a sua continuidade. Mas isso, em certa medida, pode gerar uma cobrança (interna e externa), uma necessidade de satisfazer os anseios dos outros, de estar sempre provando e reafirmando esse amor. O que pode ser cansativo e doloroso, e que pode levar a perda da espontaneidade, da autenticidade… a perda do “seu lugar” no mundo e a perda de si.

Por passar a enxergar que a sua forma de amar não é a mesma que a das pessoas a sua volta, podemos incorrer em pensamentos de que o nosso jeito de amar é errado, ou até mesmo de que o que sentimos não é amor, que não somos pessoas boas por causa disso. É preciso cuidado com a forma que nos comunicamos e somos comunicados acerca do amor. Isso porque, podemos transferir para a outra (o) por meio de uma simples conversa, aparentemente inofensiva (ou não), nossas ansiedades e limitações.

Viver em conjunto, estabelecer conexões, seja com amigos, colegas de trabalho ou familiares é um ato de compartilhamento de ideias, sentimentos e tantas outras coisas, por isso parece importante refletir sobre o fato de que não existe apenas uma forma de amar, de demonstrar afeto e de ser família.

Me parece que uma das grandes formas de se demonstrar amor é o autoconhecimento,  a separação entre o que é “nosso” e o que é do “outro”, e no limite do que for possível buscar dialogar com o outro e encontrar pontos de encontro e buscar pensar sobre as diferenças.